Cientista arromba porta de Museu Nacional em chamas para recuperar peças 'insubstituíveis'
Nas horas após o início do incêndio no Museu
Nacional, no Rio, alguns funcionários, professores e técnicos correram
por suas salas escuras e esfumaçadas para tentar resgatar o que fosse possível
antes que o fogo avançasse.
O professor Paulo Buckup se juntou a outros colegas que
arrombaram portas de gabinetes e saíram levando o maior número possível de
gavetas com compartimentos separados contendo espécimes de moluscos – uma
pequena parcela do inventário de dezenas de milhares espécimes da fauna da
América do Sul mapeados e guardados no acervo do Museu Nacional, na Quinta da
Boa Vista, zona norte do Rio, que sofreu grave incêndio na noite de domingo.
"Esses exemplares foram usados nas descrições originais
de espécies da fauna sulamericana de moluscos, tanto marinhos quanto de água
doce. Esse material é único porque é a base para conhecer as espécies descritas
ao longo do último século. Sem isso, perdemos esse registro", afirma
Buckup.
"Esse material ficava permanentemente mantido no museu
como testemunho. Como a fauna do Mundo Novo ainda é muito desconhecida, é
preciso recorrer a esses exemplares para saber que espécies nós
temos."
Buckup calcula terem conseguido salvar "alguns
milhares" de espécimes de moluscos - uma quantidade "ínfima"
diante da escala desta coleção. "Foram perdidas não sei quantas dezenas de
milhares de insetos, como, por exemplo, todo o material de aranha e de
crustáceos", afirma.
E ainda mais ínfimo considerando-se as múmias andinas, a
sala com mobiliário do Império, as muitas bases de dados, os registros de
idiomas de povos que não mais existem - "tudo destruído", afirma - ou
pelo menos essa era a impressão com que ficou ao ver o prédio por dentro.
'Coisas que não
existem mais'
O Museu Nacional foi fundado por Dom João 6º em 1918. Em
1892 passou para o endereço atual, o Palácio de São Cristóvão, que serviu de
residência à família real portuguesa ao longo do século 19. Em 1946, passou a
ser vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - hoje abrigava
seis cursos de pós-graduação, entre eles os de Antropologia Social, Arqueologia
e Zoologia.
Especializado em ictiologia, o estudo da evolução de peixes,
e pesquisador do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional, da UFRJ, Buckup
se disse "desolado" ao falar com a BBC News Brasil do lado de fora do
prédio, na madrugada depois do incêndio. Bombeiros ainda lutavam para apagar o
fogo, que aparentava estar finalmente sob controle depois de cerca de 6 horas
ardendo.
"A perda maior de todas são as grandes relíquias
antigas. Coisas que não existem mais", diz, citando um peixe-serra de
cerca de 5 metros que estava sendo preparado para ser exposto ao público.
Encontrar um no mundo hoje é raríssimo. A espécie está ameaçada de extinção.
Buckup conta que chegou ao local cerca de uma hora depois do
início do incêndio, às 19h30, para tentar salvar o que pudesse, buscando
salvaguardar alguns dos muitos itens "insubstituíveis" do Museu. E
deparou-se com as chamas consumindo a parte frontal do prédio, mas ainda
distantes da parte posterior.
"É lamentável. As partes do prédio onde esse material
(os espécimes da fauna) estava ficaram intactos por muito tempo. Mas os
bombeiros não tinham condição de fazer nada, de combater nada", afirma.
"Eles não tinham água, não tinham escadas,
equipamento", diz o pesquisador. Então tomamos a iniciativa de entrar nos
lugares e tentar salvar o que podíamos de material. Quem teve que arrombar as
portas foi a gente. Os soldados nos ajudaram a carregar as coisas."
Resgate
Buckup acredita que muito poderia ter sido salvo se a
operação tivesse sido mais ágil. E também se houvese uma política de modernizar
as edificações do Museu Nacional que começou nos anos 1990 tivesse ido adiante.
Em 1996, o Departamento de Vertebrados, onde o ictiologista
trabalha, foi separado do prédio principal e ganhou uma nova sede ali perto,
também na Quinta da Boa Vista. O mesmo aconteceu com o Departamento de
Botânica. Ambos ficaram a salvo.
"Naquela época, os governos tiveram lucidez de investir
na preservação do nosso acervo. Depois a fonte secou e a iniciativa foi
interrompida", afirma.
"Eu tenho um sentimento muito grande pelos meus
colegas. Alguns têm 30, 40 anos de trabalho aqui, e agora todo esse trabalho
está perdido na sua representação objetiva. Sua vida perde o sentido. Tanto
pelo que vão fazer no futuro usando o acervo, tanto por tudo que já fizeram até
hoje."
Os desafios que vê agora pela frente são inúmeros: acomodar
os pesquisadores para que possam continuar desempenhando suas atividades,
acomodar todos os alunos dos programas de pós-graduação da UFRJ no Museu
Nacional, recuperar a infraestrutura de pesquisa e restaurar o prédio.
"Esta é a parte mais difícil de todas", considera.
"Talvez o que sobre sejam alguns minerais e fósseis, que vão ficar sob os
escombros e vão exigir um trabalho complexo de resgate", diz.
O dia seguinte ao incêndio será o momento de avaliar a real
dimensão dos danos e começar a trabalhar pela reconstrução do Museu Nacional,
diz o diretor da instituição, o arqueólogo Alexander Kellner.
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